A situação no mundo de hoje, em particular os importantes acontecimentos das últimas décadas, irão influenciar o mundo do século XXI. Ao debruçarmo-nos sobre a educação básica para o século XXI é essencial examinarmos para que tipo de mundo essa educação terá que preparar o educando. Mais ainda: os valores, conhecimentos e competências ensinados aos educandos irão influenciar o mundo que será criado, através duma interacção dialéctica entre teoria, processo e realidade, de modo que a educação não pode ser vista como uma mercadoria neutral, mas como um instrumento poderoso na definição do tipo de sociedades que irão existir no próximo século.
A educação básica que poderá ser, hoje e no futuro próximo, a única acessível a todos os cidadãos desempenha um papel particularmente crítico, uma vez que a democratização do poder político exige a formação de cidadãos capazes de controlarem tanto os seus contextos físicos como os políticos. A erradicação da pobreza, a defesa e melhoramento do ambiente, e a criação e manutenção de uma sociedade democrática impõem importantes exigências ao sistema educativo.
O mundo tal como se apresenta hoje constitui um indicador poderoso do tipo de mundo e de desafios que podemos esperar encontrar no século XXI. O mundo já tem mais de 5.000 milhões de habitantes, mas 12% deles, incluindo a população dos EUA, da Europa Comunitária e o Japão são responsáveis por 72% do PIB de todo o mundo, enquanto que cerca de 20% deles geram apenas 1% do PI B. O fosso entre os dois grupos está a aumentar, em vez de diminuir(1). O ratio do PIB per capita entre os dois grupos eleva-se a 40/1.
Este enorme desequilíbrio económico entre os países altamente industrializados, por um lado, e os países menos desenvolvidos, por outro, reflecte-se no desequilíbrio do desenvolvimento dos recursos humanos, dispondo a grande maioria dos cidadãos dos países industrializados de uma educação básica e secundária plena, enquanto que a maioria dos cidadãos dos países subdesenvolvidos são analfabetos ou apenas têm acesso a poucos anos de educação primária.
A Cimeira Mundial realizada em 1990 em Jomtien, na Tailândia, definiu como meta a educação básica para todos no ano 2000. Encontramo-nos a meio caminho dessa data e muitos países do sul da Ásia e, particularmente, da África a sul do Sara avançaram pouco na prossecução das metas de Jomtien. A não ser que seja feito um esforço muito mais concertado, tanto pelos países industrializados, como pelos países em vias de desenvolvimento, para assegurar que todas as crianças em idade escolar tenham acesso hoje a uma educação primária relevante e de qualidade, é muito provável que a situação no século XXI não seja muito melhor do que a que temos hoje.
Uma das razões da dificuldade que os países em desenvolvimento têm em prover uma educação básica para todos tem sido o elevado crescimento populacional, estando este intimamente correlacionado com as baixas taxas de literacia e educação.
Por exemplo, na África a sul do Sara as matrículas aumentaram de 23,5 milhões de alunos em 1970 para 70,7 milhões em 1990, ou seja, triplicaram(2). Apesar deste tremendo progresso, calcula-se que, em 1990(3), na África a sul do Sara, 33% das crianças com idades compreendidas entre os 6 e os 11 anos, num total de cerca de 43 milhões de crianças, se encontravam fora da escola. Em muitos países subdesenvolvidos a população duplica em cada 20 a 30 anos. Assim, prover educação para todos torna-se uma corrida hercúlea contra o crescimento da população que ultrapassa constantemente a oferta educativa. A não ser que haja um esforço mundial muito mais concertado de assistência a África é impossível que se consiga vencer a corrida contra a explosão populacional. Os baixos níveis de desenvolvimento dos recursos humanos nos países em desenvolvimento está relacionado com o controlo da ciência e da tecnologia pelos países altamente desenvolvidos. Cada vez mais essa mesma tecnologia está controlada por empresas muito evoluídas que podem não estar muito interessadas em partilhá-la com os países pobres. A ciência e a tecnologia correm o risco de se tornarem em instrumentos de dominação dos poderosos sobre os fracos. E, à medida que o ensino da ciência e da tecnologia se torna mais sofisticado, requerendo professores mais qualificados e equipamentos muito caros, o conhecimento científico e as competências tecnológicas podem tornar-se cada vez menos acessíveis aos países subdesenvolvidos e mais pobres.
Para além do fosso existente entre os países industrializados e os países subdesenvolvidos, o colapso do comunismo na década passada pôs fim à aparente possibilidade de escolha entre dois modelos de desenvolvimento. Contudo, não parece que o mundo tenha conseguido desenvolver em seu lugar um modelo de desenvolvimento exequível e coerente, susceptível de ser aplicado em toda a parte. O modelo que mais se aproximou de uma teoria mundial do desenvolvimento foi o modelo da administração Reagan, o "Reaganomics" dos anos 80, caracterizado por economias baseadas no lado da oferta, redução de impostos, desregulação financeira e menos controlo governamental sobre as questões económicas. Enquanto que nos países já industrializados isto teve um efeito positivo no crescimento económico e na criação de emprego, particularmente nos Estados Unidos, o seu efeito nos países em desenvolvimento parece ser negativo. Isto deve-se provavelmente ao facto de, segundo a teoria, ser mais fácil tomar posse de empresas do que criá-Ias, e por as transacções financeiras se terem sobreposto a uma correcta actividade económica(4).
Nos países subdesenvolvidos a abordagem mais próxima a uma teoria do desenvolvimento foi o ajustamento estrutural. Construída sobre uma versão de teoria económica clássica, temperada com os princípios da "Reaganomics" dos anos 80, as suas principais características são:
· desvalorização da moeda;
· redução da despesa pública;
· redução dos subsídios, em especial aos consumidores, com o objectivo tanto de
reduzir as despesas do governo como de influenciar os incentivos à produção,
favorecendo os bens destinados à exportação;
· redução ou eliminação dos controlos sobre os preços, com o objectivo de
aproximar o mais possível os preços internos dos preços de mercado a nível
mundial;
· revisão das políticas comerciais destinadas a encorajar as exportações;
· revisão das políticas fiscais, em especial dos impostos, destinados a aumentar a
receita governamental;
· novos encargos ou aumento dos já existentes para os utentes de serviços públicos;
· privatização tanto de empresas como de serviços sociais; e
· reformas institucionais necessárias para implementar estas políticas(5).
Embora estas políticas pareçam razoavelmente credíveis, até hoje não conseguiram vencer as dificuldades económicas existentes, por exemplo, na África a sul do Sara, muito provavelmente devido ao curto espaço de tempo previsto para os programas de ajustamento e à falta de instituições adequadas para levarem a efeito programas de desenvolvimento em muitos países do Terceiro Mundo. Dado que o ajustamento estrutural não presta atenção suficiente a questões como as fragilidades e os pontos fortes do nível institucional e, em muitos casos, devido à ausência de instituições de importância crucial tais como sistemas de marketing, muitos dos ajustamentos macro-económicos tornaram-se inoperantes. De qualquer modo, uma perspectiva meramente económica do desenvolvimento terá sempre, com toda a probabilidade, um valor reduzido. Dada a inexistência de uma teoria do desenvolvimento que tenha já dado provas de algum sucesso no contexto dos países em desenvolvimento, é muito provável que a divisão actualmente existente entre países industrializados e países subdesenvolvidos persista até ao século XXI.
Por outro lado, é hoje evidente que o mundo se está a tornar num mercado global, com as empresas a transferirem as suas actividades de países onde os custos são elevados, como é o caso dos Estados Unidos e do Japão, para países de custos baixos, como por exemplo o México e a Malásia. No século XXI assistiremos, com toda a probabilidade, a um acréscimo do número de países que conhecerão uma evolução positiva em termos de desenvolvimento devido ao facto de disporem de uma população suficientemente instruída para responder às exigências das indústrias de base tecnológica avançada que se estão a transferir do norte para o sul. O papel da educação e da formação profissional em assegurar que os países do sul possam sair do atoleiro de pobreza em que se encontram é, por isso, de importância vital. Mais ainda, essa educação e essa formação têm que ser competitivas, tanto em termos do seu conteúdo como da sua qualidade, com as que existem nos países industrializados.
Mas o mundo não só se está a transformar num mercado global, como também numa aldeia global. Os elevados padrões de vida existentes nos países industrializados não podem ser isolados de influências exteriores, tais como a degradação ambiental, os aumentos da população, a pobreza crescente e os fenómenos de conflitos violentos, muitas vezes a nível mesmo de extermínio. Os surtos de violência nos países em desenvolvimento não podem deixar de afectar os países altamente desenvolvidos, quer seja sob a forma de ataques terroristas, ou sob a forma de afluxos de refugiados, incluindo os refugiados económicos. A contenção desta violência tem necessariamente que partir da criação de condições nos países subdesenvolvidos que, por um lado, proporcionem um ambiente satisfatório e estável e que, por outro, reduzam o fosso existente entre os que têm e os que não têm.
Outro aspecto que poderá vir a caracterizar o século XXI é a tendência para se constituírem uniões económicas regionais entre países, como é o caso da União Europeia. Um processo semelhante está a verificar-se na América, na Ásia e na África.
A criação de mercados regionais, muitas vezes conduzindo a uma maior coesão política e monetária, irá certamente afectar a forma e o ritmo do desenvolvimento.
A educação tem a ver não só com questões relacionadas com o desenvolvimento económico tais como a ciência e a tecnologia, mas também com questões como a visão do mundo e os valores. Uma vez que a educação básica continuará a ser o único nível educativo acessível a todos, a educação básica terá que tratar das realidades que as nações irão enfrentar no século XXI, ajudando a encontrar soluções tanto de ordem física como cultural para os problemas da vida real.
Outra característica das últimas décadas que é provável que se mantenha no século XXI é a da mudança constante. As sociedades estáveis e que só mudavam muito lentamente características dos séculos passados deram lugar a sociedades que mudaram radicalmente no período de uma geração. Por vezes as mudanças tiveram lugar ainda em períodos mais reduzidos. A educação terá que prover os educandos com as competências adequadas para enfrentarem com sucesso mudanças constantes, mas que ao mesmo tempo lhes permitam manter as suas identidades culturais, societais, comunitárias e individuais. A mudança constante foi provocada por um desenvolvimento de tal modo acelerado da ciência e da tecnologia que nenhuma parte do mundo pode deixar de sofrer a influência dos desenvolvimentos verificados em qualquer outra parte.
E, por fim, é evidente que as sociedades monolíticas do passado não podem manter-se no futuro. O pluralismo será certamente a marca do futuro e, com ele, a necessidade de uma maior compreensão e tolerância para pontos de vista e modos de viver diferentes dos nossos.
(1) Conforme o Relatório apresentado por Jacques Delors na primeira sessão da Comissão Internacional da UNESCO sobre A Educação para o Século XXI, Anexo 1, p. l.
(2) François Orivel, Educational Systems in Sub-Saharan Africa: Diagnostic Elements and Recommendations. Comunicação apresentada à Comissão Internacional da UNESCO: Educação para o século XXI, Agosto, 1993, p. 3
(3) UNESCO, 1993 Trends and Projections of Enrolment by Levei of Education, by Age and bp Sex, l960-2025, Paris.
(4) Conforme o Relatório apresentado por Jacques Delors na Comissão Internacional da UNESCO sobre A Educação para o Século XXI, Março, 1993
(5) Joel Samoff, Coping with Crisis: Austerity, Adjustment and Human Resources, Cassell/UNESCO, Paris, 1994, p. 7.
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